Indo pra casa

Fechei a loja às 18 em ponto. A chuva cortava a poluição e se derramava pela avenida, criando um ralo rio, levando todos os sacos de lixos que encontrava pela frente. Desci correndo a avenida, sempre em baixo dos toldos e me desviando dos guarda-chuvas que teimam em vim em minha direção. As coberturas dos comércios nunca tiveram uma função tão nobre. Só a chuva seria capaz dessa proeza. Das calçadas só podemos dizer uma coisa: péssimas. Continuo descendo, esbarrando em um, desviando, ora de uma goteira, ora de um transeunte, assim como eu, só que com um enorme guarda-chuva. Já estou com as calças respingadas. O boné cobre a cabeça, ajuda um pouco.
Atravesso a avenida em direção à estação de trem, esse transporte drástico. Na parte da estação, onde fica as bilheterias, tudo muito sujo. Cachorros, vendedores, perueiros. Algazarra geral. Kemel 2, Camargo Novo...Esses nomes são gritados a todo instante. Assim que aponta um trem na plataforma, vindo do Brás, já começam o corre-corre dos perueiros em busca dos seus passageiros.
Olha o bilhete, olha o bilhete, é o ambulante disputando a venda de bilhetes com a CPTM. O preço é o mesmo, em ambos. Dependendo da fila na bilheteria, o ambulante leva meus 2,10. Às vezes já compro um múltiplo de 10. Economizo tempo. Nada mais do que isso. Dessa vez não tenho múltiplo. A ambulante foi o escolhido. Quando estou pagando a valorizadíssima passagem ao camelô, o trem, vindo de Calmon Viana, com destino ao Brás, já está na plataforma. Pago e pego o bilhete. Não corro para pegar o trem, resolve ir até a padaria tomar um café. É o tempo que levará até aparecer outro trem, isso é, se tudo correr bem. Essas é umas das incógnitas que a CPTM nos brinda: nunca sabemos o horário dos trens. Se der sorte, quando chegar na estação pode ser que não fique muito tempo esperando. Já aprendi essa lição. Ando sempre com alguma coisa para ler. É recomendável, ajuda a passar o tempo e diluir a dor que esse transporte causa em nós, usuários, quando estamos dentro e vemos suas portas quebradas, seu chão pregado com madeiras e cheio de lixo.
Vou até a padaria, peço um café com leite e um pão com manteiga. Ao meu lado um sujeito que está tomando cerveja acende um cigarro, levanto e vou pro outro lado do balcão. Fico de pé contemplando a paisagem burlesca do Itaim Paulista. O que era para ser uma praça agora é um amontoado de barracas e bancas de camelôs. Vendem de tudo: cds, dvds, roupas, iogurtes, balas etc....Um conhecido meu que trabalha na CPTM me disse que ali, nesse lugar, será construída uma entrada subterrânea para a estação. É difícil de acreditar nisso. Olho a passarela que liga os dois lados do bairro e da estação. É certamente umas das coisas mais horrível do universo. Camelôs a tomam de ponta a ponta. Também vendendo de tudo. Ali se faz qualquer negócio. Eu mesmo já comprei uma tv e alguns livros.
Como o pão, quentinho. De uma loja ao lado da padaria vem uma música alta que dói os ouvidos. Não entendo como essas lojas usam essas músicas repugnantes para atrair clientes. Essa lógica de marketing é incompreensível. Me pergunto como é possível que uma pessoa em sã consciência entre numa lojas dessas; uma loja que põe uma caixa na frente e toca um tipo de música desagradável, como essa loja pode atrair clientela? Talvez esse seja o grande enigma do universo, pelo menos para mim. Um moleque interrompe meus pensamentos, me pede um trocado. Ofereço um salgado. Coxinha? Não, quer um lanche. Meu dinheiro não dá, só dá para coxinha. Não aceita. Vai até outra pessoa que está ali e faz o mesmo jogo. Pergunto pro atendente quanto que eu pago. 1,20. Vou até o caixa. O cara de dentro do balcão então grita a todo pulmão em direção ao caixa. VAI PAGAR UM E 20. Pago, agradeço e vou para a estação. A chuva cessou. Bilhete...bilhete...Camargo Novo, Kemel, Encosta Norte.
Entro na estação, sento num dos bancos, espero o trem mais uns 15 minutos. Daqui a pouco o apito. Fecho a mochila. Quando o trem pára na plataforma e abre as portas vejo que está totalmente molhado. Choveu dentro. Assim que entro procuro um lugar para sentar que esteja seco. Recomeço minha leitura, Histórias sem Data, Machado de Assis. São contos. À minha frente, no outro banco, 3 rapazes jogam palitinhos. Páro de ler, difícil se concentrar com tanto barulho. Fico reparando neles, são ambulantes que vendem dentro do trem. Eles não usam palitos, usam moedas e pedaços de papel. O primeiro a falar começa com 5, o segundo 4 e o terceiro 6, depois de uma gritaria abrem a mão, o terceiro ganhou. Esse começa a tirar um barato do outro. Daqui a pouco retomam, 5, 6, 4. O terceiro a falar ganha novamente e depois mais uma vez. Os dois têm que pagar 1 real para ele. O primeiro não aceita a derrota. Estação São Miguel. Entram algumas pessoas, uma mulher vem sentar do meu lado, aviso que está molhado. Não liga, senta assim mesmo. Continuo olhando os caras, que agora estão discutindo. No meu entender o primeiro não quer pagar o 1 real do terceiro. Volto a ler. Ermelino Matarazo. A chuva retorna, está bem forte. Cerveja geladinha, refri, água...os camelôs circulam de um lado pro outro do vagão vendendo seus produtos. Não é raro encontrar no mesmo vagão 2 ou 3 pessoas vendendo o mesmo produto. Guardo meu livro e fico olhando a paisagem. A construção da USP Leste continua lenta. Engenheiro Goulart. É a minha estação. O trem pára, desço, a chuva está bem forte, saio correndo para casa.

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