Adão

Inescrupuloso.
Assim eu auto defino-me. Não reclamo de nada. Tive algumas oportunidades na vida. Abracei aquela que mais me excitava: o crime. Até meus 14 anos convivi com prostitutas. Pessoas que faziam da sobrevivência sua luta constante. Vivendo à margem e numa corda bamba. No fio da navalha cresci. Todas as coisas se confundiam na minha vida. Sem salvação. Minha alma já estava condenada. Roguei à Jesus Cristo, nosso Senhor e saí.
Aquele era mais um de tantos assaltos; para mim não passava disso. Tudo na minha vida tinha sido assim: fugaz, momentâneo. E aquele assalto não seria diferente. Tudo arranjado. Rendemos o porteiro, que ficava numa cabine na entrada da empresa. Pobre coitado. Fechado numa minúscula redoma. Sempre defendendo interesses que não lhe dizia absolutamente nada. Entramos na empresa. Roubamos as máquinas e saímos. Muito fácil. O próprio sócio tinha nos passado toda a idéia da situação. Fácil demais.
Enquanto espero o horário determinado para outro roubo escrevo minhas memórias numa agenda. Meus “anotamentos”. Gosto dessa palavra, prefiro ela à anotações. Sem fundamento, vazia. Escrevo e rabisco tudo que o cérebro produz. Sem dar importância a ordem ou a gramática. Aprendi a ler e escrever no próprio puteiro. Minha mãe trabalhava nesse puteiro. Era uma prostituta. Sempre aqueles homens roçando nela, beijando seu pescoço. Passando a mão na sua bunda. Eu a odiava por isso. Odiava aquele lugar. Só uma daquelas mulheres me tratava bem. Cindy. Lembro quando a vi pela primeira vez, eu deveria ter uns 7 ou 8 anos. Ela uns 18. Linda. Exuberante. Morena, cabelos pretos e longos. Na minha infância inocente eu a admirava como uma mulher, um ser humano. Ainda não tinha olhos para seu belo corpo. Cindy me ensinou a ler e escrever. Era uma mulher culta. Gostava de ler; lia de tudo: literatura, filosofia, poesias. Quando Cindy chegou por lá eu não sabia ler nada. Ela foi me alfabetizando. Seu método era bem simples, mas eficiente. Ela me falava que alfabetizar as pessoas não era difícil. Citava um pedagogo chamado Paulo Freire. Ela me dizia que ele tinha revolucionado a educação através do livro Pedagogia do Oprimido. Que em outros países era muito respeitado, mas aqui no Brasil quase ninguém utilizava seu método. Se eu pudesse escolher trocaria minha mãe por aquela mulher.
Minha vida, até os 14 anos, passou nesse puteiro. Cindy me trazendo livros. Me mostrando um monte de novidades. Eu a adorava. Contemplava sua sabedoria. Fora daquele puteiro eu estava começando outra educação: a do crime. Dividido entre Júlio Verne e um 38 na cintura. Roubar e depois ir numa livraria para comprar um livro.
Longe da presença de minha mãe. Perto de Cindy. Ela sabia de tudo. Me abria com ela, não escondia nada. Ela nunca me reprimiu. Nunca disse faça isso, faça aquilo. Me ouvia e nada me cobrava. Comecei a me apaixonar por ela. Da figura de mãe, Cindy passou a ser para mim uma mulher. Ela sabia disso, sentia meus olhares para seu corpo.
Quando completei 15 anos já não ia mais ao puteiro. Agora ficava mais na rua e em casa. Quando não estava roubando, estava lendo. Depois que lia encontrava-me com Cindy e discutíamos o livro. Às vezes ela não tinha lido o mesmo livro, então eu lhe emprestava. Já não era mais um menino. Com 15 anos tinha me tornado um adulto. Meu rosto, infantil, não condizia com minhas atitudes. Cindy era minha paixão. Amiga, confidente. Mãe? Não, isso tinha ficado para trás. Agora eu já não era mais seu menininho.
Meu primeiro assalto. Um colega da rua me convidou para roubarmos um mercadinho, fiquei um pouco receoso, mas topei. Me arranjou um 32. Entramos no mercado quando já estava fechando. Eu e ele gritando: “todo mundo quieto”. Aqueles rostos apavorados. Saímos com um volume considerável de grana. Torramos tudo num piscar de olhos. Comprei algumas roupas e vários livros. Fui ao cinema com Cindy. Ela adorou. Depois fomos comer. As pessoas nos olhando. Será que pensavam que éramos namorados?
Cindy me deu um livro de um autor brasileiro. Rubem Fonseca: Feliz Ano Novo. Pirei. Li e reli aquele conto que levava o mesmo nome do título. Como aquele cara pudera escrever algo tão real. Tão cruel, mas ao mesmo tempo denunciante. Uma porrada nas nossas caras. Eu queria escrever como ele. Quem me dera. A partir dali comecei a escrever em cadernos minhas lembranças. Mostrava à Cindy. Ela corrigia algumas coisas. Dava uns toques. Amava ela do fundo do meu coração.
Passei a morar só. Eu e minha mãe não cabíamos mais na mesma casa. Ela estava se aposentado. Iria parar, montar alguma coisa. Um cara iria ajudá-la. Conversávamos pouco agora.
Saí de casa e aluguei uma quitinete no centro. Cindy me ajudou a alugar. Eu tinha 16 anos nessa época, minha vida no crime estava ficando agitada, roubava muito. Coisas grandes. Através da leitura me descobri uma pessoa generosa. Não iria roubar gente com pouca grana. Deixaria essa tarefa pro Estado. Bakunin foi meu mestre nessa época. Cindy me emprestou alguns livros dele e sobre ele. Um cliente seu falara dele. Cindy achou que eu gostaria e realmente isso aconteceu. Começamos a nos ver com mais freqüência. Ela ia sempre na minha casa. Conversávamos muito. Propus à ela morarmos juntos. Me disse que naquele momento não poderia.
Ficava olhando para ela. Sua pele lisa, uniforme, aveludada. Seu cabelo estava mais curto. Super escuro. Escorria pelo ombros. Num segmento de estalo falei o que sentia por ela. Nem precisa, ela já sentia essa paixão juvenil. Como num temporal, seus olhos escorriam. Foi então que ela chegou mais próximo de mim e me beijou. Primeiramente um toque leve com os lábios. Depois um beijo ardente. Caloroso. Ininterrupto. A noite era nossa. Nossos corpos quentes, grudados com o suor de ambos. A mulher que eu amava estava ao meu lado. Exuberante. Sua pele pregada à minha. A amei mais naquele instante. Éramos um esplendor da natureza. Pararia o tempo se pudesse.
Estava tentando deixar minha barba crescer. Cindy falou que se eu raspasse ficaria mais cheia. Fiz isso. Em um mês e pouco meu rosto estava com bastante pêlo. Parecia mais velho. Cindy tinha mais de 30; nunca me disse sua idade. Mas isso não me importava. Nos víamos todas as noites. Saíamos juntos. Andávamos de mãos dadas. Éramos um casal. Íamos muito ao cinema. Víamos quase todos os filmes. Discutíamos fotografia, cenário, direção. Líamos juntos livros sobre técnica cinematográfica. Propus para ela fazermos um curta-metragem, mas precisávamos de uma câmera. Resolvi que iria roubar uma. Como em todos os meus assaltos, pesquisei antes sobre o lugar. Fui sozinho. Só queria a câmera de vídeo, nada mais. Tudo certo. Cheguei na loja quase no horário de fechar. Fiquei ali no canto, fingindo que olhava alguma coisa. Esperei que a funcionária abaixasse umas das portas. Chamei por ela e apontei algo na vitrine. Quando ela veio na minha direção, puxei a arma. “Só quero aquela câmera”, falei, apontado na direção do balcão. Vacilei. Não vi a outra pessoa atrás do balcão. O alarme disparou; só deu tempo de pegar a câmera, colocar dentro da mochila e sair em disparada. Quando olho para trás vejo dois homens atrás de mim. De repente sinto uma perna entrelaçar a minha. Caio. Tudo muito rápido. Levanto novamente. Minha vida é um ato insano. Sempre foi. Penso na Cindy. Ouço o disparo. Uma dor horripilante nas costas. Sinto a bala penetrar meu ombro. Escurece tudo. A dor é fenomenal. Tento levantar, mas é tarde... Um chute violento me atinge a barriga.
Acordo num hospital. Cindy está ao lado da cama, juntamente com um homem gordo e com um tapa-olho do lado esquerdo. “Oi”, digo. Ela começa a me explicar que aquele sujeito ao seu lado é o Doutor Tavares. Advogado. “Vou para a Febem?”, pergunto assustado. “Ainda não”. “E a câmera?”. “Desapareceu”...Doutor Tavares consegue uma brecha na justiça: sou réu primário e menor. Dessa vez consigo me safar, mas não sem seqüelas. Meu nome ficará ali, nas garras da lei; qualquer outro ato falho e ela me pegará.
Fico imobilizado por uns 3 meses. Meu ombro esquerdo dói muito. Cindy cuida de mim nesse tempo. Estamos namorando, mas nenhum dos dois diz nada um pro outro. É um relacionamento aberto. Ela está ficando mais velha, noto no seu rosto algumas rugas. Seu cabelo está mais curto. Eu a amo cada vez mais. Nesse período que fico em casa, aproveito e leio tudo que posso. Agora me interesso por história do Brasil.
Cindy me propõe um emprego. Um dos seus “amigos” já providenciou; serei ajudante em sua livraria. Para mim tudo bem, digo para ela. Vou atrás de tirar os documentos. Em uma semana minha vida dá uma guinada, sou um trabalhador agora. Um homem honesto, pagador de impostos.
A livraria é uma jóia rara. Um universo de livros. Cindy me visita quase todos os dias. Comprei um livro de presente para ela. É de uma fotógrafa que tem o mesmo nome que o seu: Cindy Shermann.

No meu aniversário de 18 anos, ganho uma festa surpresa. Cindy preparou tudo. Como tenho poucos amigos, só estão ali, além de Cindy, minha mãe, seu marido; o dono da livraria, mais umas garotas que trabalham com Cindy. Tinha muito vinho e cerveja, como eu não bebo ficava só no refrigerante. A noite passou rápido, nem percebemos. Uma das garotas fica me paquerando. Cindy percebe. Fica quieta. Eu também a paquero. É muito bonita, deve ter uns 20 anos. Minha mãe e seu marido se despedem, levo eles até a saída e agradeço por terem vindo. Na volta encontro com ela, Vivian. O clima entre nós fica cada vez mais quente. Mas sob o olhar de Cindy não iria rolar nada. Combino com Vivian que nos veríamos depois.
Já é de manhã quando todos se vão. Fico ali com Cindy. Não tocamos no assunto da Vivian. Não era a primeira vez que eu saia com outra garota. Ela sabia disso. Mas seria a primeira vez com uma colega sua. Não sei se isso a aborreceu. Acordamos tarde. Tomamos café juntos. Era Domingo. Tinha marcado com a Vivian à noite. Cindy desconfiava disso. Não me contive e falei pra ela. Cometi um erro grosseiro; nunca a tinha visto daquela forma: transtornada. Ela já sabia de tudo, mas não queria ouvir da minha boca. Protestei, não mentiria. Rompemos. Peguei algumas coisas e fui embora.
A noite encontrei com Vivian. Estava uma delícia. Cheirosa. Amava Cindy, mas Vivian tinha o esplendor dos 20 anos. Continuamos a sair, mas não gostaria de me relacionar seriamente com ela. Falei isso para ela logo no início. Ela também não queria nenhum tipo de compromisso. Saíamos juntos, transávamos e só.

Meu trabalho já estava me entediando. O fato de ter ficar ali, enfunado, todos os dias, aqueles clientes metidos a intelectualóides. Sempre repetindo frases feitas. Sempre falando o que os outros já disseram. Papagaios de merda. Isso me irritava. Para compensar a chatice comecei a roubar alguns livros na loja. Pegava a noite, punha na mochila, ninguém desconfiava.
Cindy, desde o nosso rompimento, não aparecia mais na livraria. Estava com muitas saudades dela. Já tinha quase um ano que não nos víamos. Resolvi ir até a sua casa. Fiquei meio receoso, mas quando ela veio abrir a porta e me viu ficou super feliz. Continuava linda, seus cabelos estavam maiores. Nos abraçamos. Procurei sua boca. Não. Tudo bem. Esperaria.
Ela não estava bem, iria parar de trabalhar como prostituta. Tinha juntando uma grana. Mas um ex-cliente seu estava lhe perturbando, ameaçando-a sempre. Me intrometi no assunto. Resolveria a parada. Não, eu não, outro pessoa resolveria.
Ficamos juntos nessa noite. Estava com saudades daqueles abraços. Seu corpo era quente. Foda-se o esplendor dos 20 anos. Aquele corpo era muito era muito mais quente e volumoso. Cindy estava em plena forma.
Saí de sua casa bem cedo. Não fui trabalhar. Com o endereço do canalha na mão fui procura-lo. Ele trabalhava numa empresa de cosméticos. Gerente. Soube também que era casado. Vi seu carro chegando. Esperei ele estacionar e sair do carro. Me aproximei e chamei pelo seu nome. Quando ele olhou para trás acertei sua boca com um soco. Ficou meio tonto, sem saber o que fazer, aproveitei e enfiei o pé na sua barriga. Caio. Olhei pros lados para me certificar de que ninguém nos via. Nada. Ele ali caído, se contorcendo, aproveitei e dei-lhe umas bicudas. Quando vejo outras pessoas se aproximando, me mando. O recado estava dado.
No outro dia passei na livraria. Pedi as contas. Não queria mais aquele serviço. O dono não falou nada. Voltaria depois para receber. Deu vontade de rouba-lo, mas não seria uma boa idéia. Fui encontrar-me com a Cindy, almoçamos juntos. Ela me diz que o canalha havia ligado. Não tinha jeito, as providências tinham que ser mais trágicas. Não menti pra ela. Disse-lhe que eu mesmo havia feito o serviço. Não gostou muito. Foi quando ela me disse que iria embora pro Rio de Janeiro. Perguntou se eu não queria ir junto. Propôs que morássemos juntos lá. Não pegaria no meu pé. Poderia sair com quem eu quisesse. E ela também. Prometi que pensaria a respeito. Transamos muito nessa noite. Ela parecia que estava possuída.
Saí de sua casa pensando na proposta de irmos pro Rio. Não sabia se isso era o melhor para mim naquele momento. Estava totalmente sem grana. Precisava me erguer, depois quem sabe...voltei para minha casa. Aquela Kit estava me saturando. Essa rotina não era para mim. Minha vida exigia ação. Desde cedo vi e vivi essa ação. Sempre mudando com minha mãe. Sempre o movimento presente em nossas vidas ordinárias. Cresci com esse movimento constante. Pessoas entravam e saiam a todo instante. Via isso com naturalidade. Sempre foi assim. Minha infância toda assim. Mulheres nuas. Sempre as vi nuas. Com 12 anos já trepava com as prostitutas. A naturalidade das coisas...uma subversão do modo familiar de se viver.
Passei por tudo. Via aquelas mulheres se drogando: cocaína, heroína...Nunca experimentei nada. Nem bebida alcóolica. De tanto ver pessoas se matando fiquei com aversão. Minha adrenalina é outra...
Não sei se estava preparado para esse relacionamento com a Cindy. Seu ciúme era muito, por mais que ela falasse que não, tinha lá minhas dúvidas.
Dormi mal, meus pensamentos em abundância. Logo de manhã Cindy está na minha casa. Também tinha dormido mal. Veio me avisar que já estava indo para o Rio. Queria saber se eu iria com ela. Fiquei pasmo. As mulheres tomam as decisões muito rápido; sua lógica era dinâmica. Falei para ela que não. Ela já sabia disso, só veio confirmar. Me abraçou. Nos beijamos. Me passou o endereço de onde iria ficar, fiquei olhando ela sair.
A ficha ainda não tinha caído. Para mim iria ver Cindy mais tarde. Pura ilusão que o cérebro cria para aliviar a dor. Estava muito triste com a ida dela para o Rio de Janeiro.
Fiquei um pouco em casa, mas logo veio a idéia de fazer um assalto. Mas o quê? Não tinha me programado, nem planejado nada. Precisava aliviar a tensão causada pela viagem de Cindy. Estava irrequieto. Minha cabeça pensando. Nada me aquietava. Tentei ler, ouvir música. Nada. Saí e fui ao cinema. Tentava me acomodar...saí e passei na livraria. Já estava planejando assaltar ali mesmo...fiquei um tempo ali observando. Conversei com a garota do caixa. Cadê o dono. Ah tá não...viajando. Não poderia ser mais perfeito. Voltei para casa mais calmo.
Já tinha tudo em mente. Acordei cedo peguei minha arma e coloquei dentro da bolsa. Cheguei na livraria antes mesmo de abrir. Chega a caixa e mais dois funcionários. Não me vêem. Espero eles abrirem as portas. Assim que a livraria está aberto entro e vou direto pro caixa. A moça quando me vê toma um susto. Você por aqui?? Conversei um pouco com ela. Vagabunda. Pensava que eu não sabia que ela saia com o dono. Depois vinha falar das prostitutas. Nunca gostei dela. Era agora. Abri a bolsa e mostrei a arma para ela. Sem alarmes, falei baixinho. Pedi a grana. Ela teimou dizendo que não tinha nada. Sem vergonha do caralho. Forcei a voz e fiz ameaças. Abriu o caixa e me passou o que tinha dentro. Safada. Digo pra ela que embaixo também tem dinheiro. É um compartimento que tem nos caixas. Não serve pra porra nenhuma; já tinha sacado aquilo quando trabalhei ali. Levantou. Um monte de nota de 50 e 100. Me passou tudo. Olhei para a livraria. Alguns cliente começaram a chegar. Olhei para a vagabunda, pela sua cara vi que queria ficar com algum dinheiro. Dei-lhe umas notas. Pisquei para ela. Entendeu a mensagem.
Sai fora. Acho que alguém percebeu. Tomei um ônibus e fui direto para a rodoviária. Comprei passagem pro Rio. Só pensava na Cindy. Logo quando sento na poltrona verifico quanto consegui. 2 mil e pouco. dava pra fazer alguma coisa.
Durmo um pouco e sonho com a praia...chego na rodoviária carioca de noite. Ligo pra Cindy. Ela toma um susto. Pego um táxi e vou para sua casa. Vejo a praia da janela do carro. É uma paisagem linda.
Do portão ela já me avista. Está com um shortinho colado. Seu corpo ainda é bonito. Firme. Deve ter uns 40 anos, penso enquanto pago o taxista. Ela está contente. Nos abraçamos como nunca. Parecia que não nos víamos há uns 100 anos.
A casa que ela está é grande. Uma amiga sua emprestou. Falo o que fiz em São Paulo. Ela não acredita. Fica um pouco nervosa. Tento argumentar que a mina do caixa levou sua parte. Talvez ela ficasse quieta, mas tudo em vão. Me pergunta quanto eu consegui. 2 mil. E suas coisas? Em São Paulo, depois eu pego.
Ela me fala que conseguiu uma casa em Petrópolis, lá iria abrir um antiquário. É a nossa chance, ela fala feliz. Conversamos muito sobre um monte de coisas e depois fomos passear na praia. Era a primeira vez que eu via o mar. Que emoção. Aquelas luzes. A noite a cidade era mais charmosa.
Cindy me apresentou sua amiga. era um travesti. Susy Cristina. Ela tinha o rosto bem feminino. Magra, alta. Acho que ela colocou todo o silicone do mundo nos peitos e na bunda. Até nos quadril, depois fiquei sabendo. Trabalhava de noite numa boate em Botafogo. Fomos até lá. Uma boa parte daqueles travecos se passavam por mulher tranqüilamente. Qualquer cabra macho se encantava quando via aquelas “meninas”. Cindy brincava comigo, me perguntando se eu sairia com uma delas. Disse que não tinha preconceito nenhum, mas não transaria com elas em hipótese alguma.
Tinha que voltar para São Paulo, pegar minhas coisas. Já estava há uma semana no Rio. Cindy comprou roupas para mim. Não deixava eu gastar o dinheiro. Comia e bebia à suas custas. Ela nem ligava, eu ficava um pouco receoso. Sabia que não tinha problemas nenhum. Ajudava ela nas tarefas domésticas.
De dia Susy, quando não estava dormindo, ficava conosco. Nunca me cantou. Sabia do meu relacionamento com Cindy. conversávamos sobre isso. Ela me perguntava se eu não achava ruim sair com uma mulher mais velha. Dizia que não. Amava Cindy verdadeiramente.
Já estava tudo pronto. Cindy conseguiu um caminhão para trazer minhas coisas direto para Petrópolis. Cheguei em São Paulo à noite. Tínhamos planejado isso. Evitaria que alguém reconhecesse na rua. Tomei o metro e fui direto pro apartamento. Tudo igual. Ainda perguntei pro porteiro se alguém tinha me procurado. Ninguém. Ótimo. Avisei que iria mudar. O caminhão chegaria de manhã.
Tinha que ensacar as coisas, procurei alguns sacos...tinha que comprar uns...desci. 4 e pouco. termino tudo. Cochilo um pouco; desperto com a campanhia do interfone. Era o motorista que me aguardava. Olhei no relógio 8 horas. Desci. Bom dia. Subimos e começamos a descer as malas, os sacos e tudo mais. Terminamos de colocar as coisas no caminhão eram quase 10 horas. Estava suado e cansado. Dei uma última olhada na Kit. Algumas coisas ficariam ali, cama, um armário; fogão. Para isso não tinha importância.
Desci. Fui no caminhão. Fizemos a viagem até Petrópolis em 15 horas. Sentia um frio na barriga. Um desequilíbrio. A minha vida era isso. Talvez agora...era outra chance. Não podia reclamar. Nunca reclamei. Eu assumo minhas responsabilidades. Sabia da ação e reação.
Chegamos em Petrópolis a tarde. Estava muito frio e a garoa fina cobria a cidade. O barulho do caminhão fez Cindy sair para fora. Ficou feliz ao em ver. Também fiquei muito feliz.
Descarregamos as coisas. Foi mais rápido do que carregar. Estava quebrado. Deitei e dormi rapidamente. Sonhei com Cindy. corríamos pela praia. Estava frio mas nós estávamos pelados. Correndo e mergulhando no mar. Quando paramos ela me pega no colo e começa a me amamentar. Fico com nojo daquilo, mas não consigo evitar. Ela tem mais força do que eu e não deixa eu me soltar.
Dormi o dia todo. Acordei no outro dia cedo. Estava um pouco triste. Contei meu sonho para Cindy. ela riu e mandou eu ler Freud. Ficamos em casa arrumando as coisas. Era uma casa grande. Perguntei quem era o dono. Ela não quis falar. Contei os cômodos da casa: 10. Mais uma área de serviço enorme. Lavanderia e um quintal repleto de árvores. Uma garagem que cabiam uns 4 carros tranqüilamente.
Terminamos de arrumar a casa já era tarde. Eu e ela teríamos quarto separados. Era melhor assim. Liguei pra minha mãe. Ela já sabia que eu estava em Petrópolis. Cindy lhe falara. Disse que estava tudo bem. Na verdade acho que ela nunca se preocupou comigo. Sempre suas coisas, seu corpo. Tinha que manter o corpo sempre em forma. Era isso que ela me falava. Senão como iria alimentar a gente. Malhava e se alimentava bem. Seu corpo era sua ferramenta de trabalho. Ela era uma mulher bonita, mesmo agora, mais velha, a beleza não a abandonara.
Cindy perguntou se eu queria conhecer Petrópolis a noite. Propus que ficássemos em casa e trepássemos bastante. Ela aceitou. Então ficamos transando. Era muito bom transar com ela. Sabia das coisas. Eu era seu garotinho. Mesmo agora com quase 20 anos. Sentia se afeto, sua ternura. Será que eu tinha complexo de Édipo? Se tinha também foda-se. Nem ligava. Eu adorava Cindy. era uma mulher gostosona. Bunda grande. Ela ficava em cima de mim rebolando. Eu adorava isso.
Já tinha me acostumado ao clima de Petrópolis. A qualidade de vida era indubitavelmente superior a qualquer outra cidade grande. Cindy já conseguira montar seu antiquário. Vendia de tudo: livros, objetos de artes, móveis antigos; às vezes coisas sem o mínimo valor que ela vendia para algum otário metido a sabichão por um preço de relíquia. Quando isso acontecia ela me olhava e piscava. Eu ria baixinho. Quando o fulano saia, aí sim, ríamos muito e alto.
A vida seguia. Éramos um casal. Estávamos casados. Não saíra com mais nenhuma mulher desde então. Mas a terapia amoral da vida é surpreendente. Ela nos arremata e joga conosco. Quando tudo parece certo a linearidade é rompida bruscamente.
Iria completar 21 anos e Cindy programara uma festa. Susy já estava em nossa casa. Viera do Rio juntamente com outro travesti, sua amiga, Leonora. Não era bonita com Susy. Tinha o rosto retalhado. As bochechas muito grande. Cindy me disse que Leonora estivera presa por tráfico. Era usuária de cocaína.
Um dia antes da festa fui ao mercado comprar as coisas. Já conhecia algumas pessoas na cidade. Passei na casa de uma garota, Michele. Tinha conhecido ela numa loja de roupas. Sua mãe me atendeu. Disse-me que ela estava trabalhando, só estaria em casa a tarde. Convidei-a também para a festa. Fui até a loja e encontro Michele. Oi. Falo sobre a festa. Fala que vai. Fico feliz. Gostava dela, mas ela sabia do meu rolo com Cindy e não tinha me dado nenhuma chance. Fui embora para casa.
No outro dia logo cedo começamos a arrumação. a tarde já estava tudo pronto. Leonora e Susy já estavam chapadas. Não conseguiam nem falar direito. A boca retorcida. Cindy estava linda. Estava com um vestido preto; os cabelos pretos. Do jeito que eu gostava.
As pessoas começaram a aparecer. Michele apareceu bem cedo. Estava muito bonita. Uma blusinha mostrando a barriga e uma calças jeans bem justa delineava seu corpo. Dançamos juntos. Cindy nos olhava com a canto dos olhos. Michele dançava bem. Eu não fazia feio. Também dancei com Cindy, tentando aplacar um pouco seu ciúmes. Ela jurava que não estava com ciúmes, eu só ria. Estava feliz.
Fui até o quintal comer um churrasco. Vi Susy subindo pro quarto. Estava se prostituindo. Aquilo me irritou. Fui pra sala e falei com Cindy. ela disse que não tinha nada a ver a minha irritação. Sai e fui para fora novamente. Num canto do jardim Leonora estava paralisada. Nem se mexia de tão louca que estava. Cindy veio falar comigo. Perguntou se eu estava irritado. Disse que não. Estava tudo bem.
Mais tarde ouvimos um grito vindo lá de cima, do quarto. Era Susy. Subimos para ver o que tinha acontecido. O cara que tinha subido com ela, estava caído, se contorcendo; a boca espumando. Susy chorando desesperadamente. O cara estava tendo uma overdose. Na mesa ao lado a cocaína esparramada.
Cindy me pediu que fechasse a porta e foi até o cara e começou a pressionar seu peito. Forçava com a mão. Quando fui ajudá-la já era tarde demais. O cara estava morto. Desespero total. Descemos e pedimos para as pessoas irem embora. Que desalento. Estava com um ódio daqueles travestis. Viciados de merda. Minha vontade era matar os dois. Despedimo-nos das pessoas. Pedimos desculpas. Nem vi a hora que Michele saio. Olhei pro jardim e vi Leonora tombada. Fui até lá e enchi sua barriga de chutes.
Estava na varanda quando Cindy veio falar comigo. Pediu que eu dormisse fora, só voltasse no outro dia. Compreendi sua preocupação. Peguei minha mochila, coloquei algumas coisas e saí. Dormi numa pensão no centro da cidade. Levantei no outro dia cedinho. Tomei o café oferecido pela pensão. Voltei andando para casa.
Aparentemente estava tudo em ordem. Ainda estava bagunçada, resultado da festa. O chão repleto de latas de cervejas. Não tinha ninguém. Vi um bilhete na geladeira. Era da Cindy. Dizia que tinha ido para a delegacia. Não era para mim ir atrás dela, esperasse em casa. Saí novamente e fui até a casa da Michele. Chamei. Ela veio me atender. Me convidou para entrar. Falei que não precisava. Ficamos ali no quintal. Pedi desculpas pelo acontecido. Ela, muito compreensível, fala que eu não tinha culpa nenhuma. Ficamos conversando. Então a convido para sair. E a Cindy?, pergunta meio desconfiada. Explico para ela que minha relação com a Cindy era de amizade. Morávamos juntos, transávamos de vez em quando, mas não éramos um casal. Ficou pensativa e me disse que aquela era uma situação nova para ela. Entendi. Quando ia me despedir, ela me pergunta se eu já arrumei a casa. Digo que não. Então ela pergunta se não gostaria da sua ajuda. Achei ótimo.
Limpamos tudo. A casa estava uma imundície geral. Vômitos, latas espalhadas, copos quebrados, camisinhas...Aproveitei e mostrei meu quarto para Michele, reforçando o que eu lhe havia dito sobre meu relacionamento com Cindy. Contei-lhe minha história. Ela ficou pasmada. Confie nela. Senti que gostou disso. Éramos mais íntimos agora. Ela também me contou sobre sua vida; viera de outra cidade, Porto Alegre, com sua família. A empresa que seu pai trabalhava tinha se transferido para Petrópolis. Ela não gostava muito daquele lugar. Achava que não tinha muita coisa para se fazer. Combinamos de irmos ao cinema.
Cindy chegou bem tarde. Estava cansada. Falou que teria que depor sobre a morte do cara. Susy tinha ficado presa por tráfico. Ainda tinha bronca passadas. Leonora fora embora. Achava que alguém a tinha chutado; sua barriga estava toda rocha. Contei pra Cindy que Michele estivera comigo, me ajudando a limpar a casa. Maldita hora que falei isso. Começou a falar sem parar. Você não perde tempo mesmo...era isso é muito mais coisas...fiquei muito irritado com aquilo. Lembrei para ela das suas próprias palavras sobre nosso relacionamento. Ficamos discutindo durante um bom tempo. Eu já previa que isso ocorreria. Cindy é ciumenta ao extremo. Essa foi nossa briga mais violenta.
Quando acordei ela já tinha ido pro antiquário. Fiquei pensando nessa nossa relação. Estava tudo bem desde que eu ficasse sob sua tutela. Isso eu não queria. Já havíamos conversado. Ela mesma tinha proposto uma relação aberta. Gostava dela mas não queria ficar como uma espécie de brinquedinho, que ela usa e depois guarda para brincar mais tarde.
Fui pro antiquário. Já cheguei falando. Ela só ouvia. Falei tudo que eu estava pensando. Ela começou a chorar e gritar comigo. Falou que eu só estava usando ela. Jogou tudo na cara: você come e bebe de graça. Chamei ela de mentirosa. Então senti sua mão na minha cara. Era a primeira vez que alguém batia na minha cara. Aquilo me enervou ao máximo. Fiquei cego de raiva. Fui pra cima dela. Quando parei de bater ela estava caída no chão sangrando muito. Levantou e pegou o primeiro objeto que sua mão alcançou: uma estátua. Lançou-a contra minha cabeça. Acertou em cheio. Fiquei tonto. Minhas vistas escureceram; tentei me apoiar em alguma coisa. Não vi nada. Caí. Fiquei alguns segundos esperando. O sangue escorria da minha cabeça...descia pelo lado do rosto e seguia pelo pescoço. Porra! Gritei, o que deu em você caralho? Ela começou a me xingar e me mandou embora. Mas eu tinha o meu orgulho e ele estava muito ferido. Ela não iria se safar assim. Apanhei uma peça de ferro e fui pra cima dela. Ela desviou da primeira tacada, mas a segunda foi fatal. Pegou numa parte do rosto e da cabeça. Caio ensangüentada. Um cliente entrou na loja. Gritei para ele sair fora. Precisava sair dali urgentemente. Fui até o caixa e peguei a grana que tinha lá. Voltei pra casa e enchi minha bolsa com tudo que cabia: livros, roupas, cds...peguei mais dinheiro. Lavei a cabeça, tinha um corte enorme...fiz um curativo meia boca e saí.
Na praça tomei um táxi pro Rio. Ainda estava sangrando, mas era menos. Cheguei na rodoviária do Rio e peguei um ônibus para a Bahia. Minha vida de nômade inescrupuloso estava começando...

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