DAS CINZAS

Estação de trem Engenheiro Goulart, 8 e pouco da manhã. Estou indo trabalhar. Daqui a pouco estarei embarcando num dos piores transportes coletivos do mundo, e de quebra – pela péssima qualidade - o mais caro. Ouço o barulho de um apito fino e curto, é o trem. Poucos metros antes da estação, ele faz uma curva sensacional, penso na possibilidade de fazer umas fotos desse momento. Vou pro último vagão. Pessoas estão esparramadas pelos bancos, outros assentos estão ocupados por bolsas de passageiros que estão vindo de seus serviços. Quase não consigo um lugar para sentar, apesar do trem estar vazio. Sento perto de uns pés, tomo cuidado para não acordar o dono dele, que com certeza é mais um desses trabalhadores noturnos, que aproveitam a longa viajem para colocar um pouco do sono em dia. Num ato quase espontâneo vou observando meus companheiros de viagem e de angústias por esse trajeto quase surreal. Sem querer durmo com o livro sobre o colo. Desperto e olho pela janela, estamos chegando em São Miguel Paulista, da janela corroída pelo tempo observo a enorme placa – como se fosse um totem - fincada na entrada de um, digamos, bairro. Os dizeres da placa informam que ali , naquele aglomerado de gente, estará nascendo o maior plano de urbanização do Brasil. Nesse momento penso no tal marketing. Gobbels se contenta, seus discípulos trabalham bem. A alma do negócio mais viva do que nunca. Volto meus olhos para dentro do trem, alguns passageiros estão despertando e se espreguiçando, já estão perto de suas casas, mas ainda falta um pouco, quem sabe...sob meus pés um pedaço de madeira faz a vez do que um dia foi o piso daquele transporte.
Não consigo mais ler, a gente se acostuma com quase tudo nessa vida, mas nesse momento não gostaria de estar sentando ali. Penso no livro do Alessandro, ele descreve esses percalços perfeitamente. Penso também que não estou tal mal comparado com outros viajantes que precisam se locomover no sentido contrário, da periferia para o centro, aí a coisa fica ruim de verdade.Olho mais uma vez para a madeira pregado no piso, é ridículo. Como um transporte coletivo fica numa situação dessas? Acho que cada um nós, passageiros, sabe a resposta. Um ambulante passa vendendo seu produto, os passageiros que já despertaram e que vão descer, não ligam muito, os que estavam dormindo acordam com o anúncio do produto. Os rostos são duros, os olhares, um misto de raiva e compreensão.
Afinal todos precisamos sobreviver. E é essa a palavra que melhor condiz com nossa realidade, somos sobreviventes, mas que dínamos trabalhadores, somos os “pós boias-frias”; a continuação da mão de obra escrava, só não sabemos disso, e é até bom, pois assim não nos revoltamos e seguimos a cada dia a enfrentar os desafios da vida.
Estação de São Miguel Paulista, hoje meu destino é o Itaim, algumas pessoas descem. Os guardas fazem seus serviços, olham para dentro do vagão. Tudo em ordem, só pessoas sonolentas. Essa chamada linha F – que são os trens que circulam do Brás para Calmon Viana – já deveria ser melhorada há muito tempo; mas por motivos maiores, só a promessa de uma reforma é que é divulgada. Todos os trens, sem exceção, que circulam por essa linha são amontoados de ferros enferrujados, que, no mínimo, há uns 10 anos, já deveriam ter ido para o seu devido lugar, que é a sucata. Cada um dos vagões, desgraçadamente sujos, miseravelmente velhos, fazem desse transporte a opção que o poder público fez para a periferia paulistana: o puro e simples descaso. Manifestando sua hipocrisia sádica, o governo estadual faz questão de manter esses trens circulando numa linha férrea atordoada pela incapacidade administrativa que atravessa o tempo e perde-se na nossa vida desesperançada, atordoando-nos e fazendo-nos incapazes de qualquer ato. Esse o tal trem, transporte coletivo que é um verdadeiro cata bagulhos, que no caso somos todos nós usuários. Sempre sujo, com lixos espalhados pelos vagões - até porque os próprios usuários desse transporte, sentindo-se como num chiqueiro, não enxergam nenhum motivo para conservar a limpeza e jogam os seus lixos onde a mão estiver mais próxima. E aí somos todos responsáveis. Passageiros, ambulantes, funcionários, poder público....todos com sua parcela de culpa por tal paralisia refletida no transporte.O Itaim se aproxima, guardo o livro que não consegui ler. Meus pensamentos, mais uma vez, são para essa condição que enfrentamos todos os dias. Penso em como somos frágeis, sem forças, sem expressão, sem perspectivas...como esse transporte, “sucata-moribundo”, que espelha e revela o nosso ser coletivo que cada vez mais vai perdendo a vontade e as utopias, transformando-se, também, num amontoado de sucatas.Nossas vidas abandonadas, até por nós mesmos; essa causticidade que nos acomete tornando-nos inexpressivos. E é essa a vida que a periferia terá que encontrar e transformar; e tal transformação passa por tudo que nos envolve: desde os trens sucateados, até a nossa cultura aniquilada.

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