um ato descrito - jonilson montalvão

Como um ato pode me reaver de situações quase imprevisíveis assim? Me pergunto enquanto visto a minha roupa de trabalho. Meu fone toca e em alguns minutos estou ouvindo ela reclamar novamente da falta de atenção aos filhos. Digo que no final de semana eu pego eles e tento me desvencilhar da situação, enquanto a voz dela penetra nos meus ouvidos como uma bomba destruindo toda minha paciência matinal.
Mulher é assim, se queremos ficar com os filhos elas não deixam, mas quando nos afastamos um pouco lá vem elas reclamando e cobrando a tal atenção. Nunca entendi isso muito bem, e não vai ser agora que isso acontecerá.
Terminei de me vestir e comi algo, como sempre correndo, e daqui a alguns segundos estava dando um bom dia forçado ao porteiro do prédio.
Dentro do carro tento ouvir alguma música que me reequilibre, mas esse tal (re)equilíbrio não me é muito chegado, ainda mais num trânsito alucinante como o dessa cidade. Uma buzina soa tão alto quanto a voz da minha ex. ao telefone. A comparação é inevitável. Ainda penso nas crianças um pouco mas logo passa, pois minha atenção nesse instante é voltada para um motoboy, que passa como um raio...eu jurava que por esse corredor não passaria nem um fio de naylon, mas ele conseguiu.
A música até que soa bem, tento me esticar dentro do automóvel, fazer uns alongamentos. O farol abre e, por alguns milésimos de segundos, eu não reparo, então tome outra buzinada...e mais uma e mais uma e agora já são um monte; acelero o carro e daqui a pouco estou parado novamente...risível.
9 horas. É o locutor que diz. Estou atrasado, penso em ligar para o escritório, até pego o celular, mas logo desisto. Queria era mesmo uma boa cama nesse momento. Dormir até a hora que eu desejasse e não me incomodar com porra nenhuma, mas essas escolhas que não são escolhas e acabam sendo assim mesmo...pelo menos a música é de boa qualidade.
9 e 15, o locutor diz novamente e eu ainda não consegui dirigir senão uns 3 metros. Acima de mim um zunido de helicóptero. Pego a garrafa com água e despejo pela boca. Deve aliviar um pouco.
Trânsito. Trânsito. A reportagem está nas ruas anunciando o congestionamento que segundo a CET já atinge uns 5.000 quilômetros. Recorde para esse ano que a qualquer momento pode ser quebrado.
Bom, penso, então não estou tão só assim. Pego o celular e ligo pro meu filho, o mais velho. Alô, ele diz numa voz sonâmbula. Oi filhão, tudo bem? Pai?, isso são horas!?, que merda, nem dormir a gente pode mais. Ah...desculpa, pensei que...Esquece pai, você sempre foi assim mesmo...Já pedi desculpa...Tá bom, mas faz um favor, me liga depois...
Desligou. Tá bom, te ligo depois filhodaputadocaralho.
Agora consigo movimentar o veículo por alguns metros, o suficiente para me acomodar num canto que, por algum desses milagres inexplicáveis, parecia estar à minha espera. Estaciono e desligo o carro e permaneço ali sentando. Olho minha agenda: reunião às 8:00, assinatura do novo contrato com a empresa “Destruidora de Vidas” às 9:00, mais uma reunião com o todo poderoso dono da “Propaganda e Vertigem” às 10:00, etc. etc. etc...nesse momento o celular toca, é da empresa. Olho lá para fora e só vejo a fumaça e o cinza escuro corroendo os pulmões e outras utopias. Minha cabeça está confusa, dolorida e arrebentada. Desligo o celular e fecho ele dentro do porta-malas; saio do carro, tranco a porta com as chaves dentro e um alivio estranho toma conta do meu corpo. Caminho pela avenida com uma sensação boa, daquelas que eu tinha quando era criança e brincava nas ruas sem compromisso.

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